Pobres não são estúpidos ao migrarem para as cidades
Governos devem preparar centros urbanos para receber as novas populações, diz sul-africano especialista em favelas que participou do 5º Fórum Urbano Mundial, no Rio
   ANTÔNIO GOIS
   DA SUCURSAL DO RIO 
 Os pobres não são estúpidos.  Ao migrarem do campo para as  cidades, tendência mundial  que muitos analistas veem como irreversível, fazem isso  após avaliarem suas condições  de vida em áreas rurais e compararem com o que encontrarão nas cidades.
  As estatísticas dão razão a  eles. Por isso, a tentativa de interromper o fluxo migratório  tende a ser inútil, e o melhor a  fazer é preparar as cidades para  receberem essa população.
  O alerta é de um dos maiores  especialistas mundiais em favelas, o sul-africano William  Cobbett, que foi um dos principais palestrantes do 5º Fórum  Urbano Mundial, realizado na  semana passada, no Rio.
  Cobbett já visitou favelas em  todo o mundo e conhece bem a  realidade brasileira. Atualmente, é diretor-geral da organização Aliança  de Cidades, financiada pelo Banco Mundial e que  apoia projetos de melhoria das  condições de vida em assentamentos precários no mundo.
  Para ele, a América Latina  deve ser tomada como exemplo  das consequências de uma urbanização mal planejada.
  Ao tentarem negar o direito  dessas populações de terem  terra e serviços nas cidades, os  governos locais deram margem  para o crescimento de poderes  paralelos, que hoje são ameaça  à segurança.
  Não deve ser por isso, no entanto, que se deve agir para melhorar as  condições de vida nesses locais. O mais importante é  reconhecer o direito dessas populações à terra e aos serviços  básicos de uma cidade.
  Leia a seguir a entrevista que  Cobbett concedeu à Folha durante o 5º Fórum Urbano  Mundial.
  FOLHA - A ONU acabou de realizar um fórum mundial sobre urbanismo no Rio. Encontros como esse não tendem a ficar apenas no discurso e a resultar em pouca ou nenhuma ação?
WILLIAM COBBETT - Temos que ser realistas quanto ao objetivo desses fóruns. Antes de partir para a ação, é importante formar consensos, nacionais e internacionais, sobre assuntos que precisam ser enfrentados e suas soluções possíveis.
É preciso criar um diálogo global sobre a importância das cidades, identificando seus problemas sociais, econômicos e políticos, mas buscando também saídas para elas.
Além disso, há um aspecto importante, que é a troca de experiência entre cidades.
Nada do que acontece ou aconteceu na América Latina será completamente diferente do que está se passando agora em alguns países da Ásia ou da África subsaariana.
É importante ter o que chamamos de aprendizado horizontal, ou seja, cidades aprendendo a partir da experiência de outras cidades, países aprendendo com outros países, em vez de contar apenas com o antigo modelo de assistência técnica, do hemisfério norte para o sul.
FOLHA - Em 2007, pela primeira  vez na história mundial, a população urbana superou a rural em todo  o planeta. Trata-se de um fenômeno  irreversível, ou ainda é possível pensar em estratégias para manter as  populações no campo, para que elas  não sobrecarreguem as cidades? 
COBBETT - Cada país tem uma  realidade distinta, mas a tendência global de urbanização é  muito forte. Ela começou historicamente na Europa, nos  Estados Unidos e em países da  Ásia oriental. Depois se espalhou para a América Latina e  agora acontece na África e no  restante da Ásia. Pode-se discutir se ela é natural ou evitável,  mas é fato que é uma transição  demográfica em curso.
  Acho que a resposta mais inteligente dos governos de países onde esse  processo ainda  está em curso é planejar com  antecedência. É preciso ter  consciência dos números e tendências, e é por isso que fóruns  como esse são tão importantes.  Em nenhum lugar do mundo  houve sucesso em políticas de  governos que tentaram manter  pessoas em áreas rurais.
  Se as pessoas querem migrar  para as cidades, elas certamente o farão. Além disso, é preciso  reconhecer que as pessoas pobres não são estúpidas. Elas  olham para as condições que  têm no momento e comparam  com as cidades.
  Se decidem migrar, fazem isso a partir de julgamentos. Elas  pensam que, se mudarem para  uma cidade, terão melhor acesso para elas e seus filhos a escolas,  hospitais e serviços públicos em geral. E, estatisticamente, elas estão  certas. É por isso  que migram.  
FOLHA - A transição do rural para o  urbano então é positiva? 
COBBETT - Não podemos fingir  que a urbanização é uma resposta a todos os problemas. Definitivamente,  não é. Se mal gerenciada, como aconteceu na  América Latina, governos terão  que passar 10, 20, 40 anos resolvendo problemas de falta de  planejamento.
  É por isso que os países da  África subsaariana ou a Índia,  entre outros, têm muito a  aprender com a experiência  dos latino-americanos.
  É importante se conscientizarem dos problemas que podem vir antes que  eles se tornem inevitáveis e consumam  décadas para serem resolvidos.
  Eles precisam perceber que  há um processo em curso e tentar o mais rápido possível se  preparar para poder aproveitar  os efeitos positivos que a migração do campo para as cidades traz para a  economia.
  É bom lembrar que todas as  economias bem-sucedidas do  mundo, sem exceção, passaram  por um processo de urbanização e industrialização. Nenhum país atingiu  níveis satisfatórios de renda sem passar  por essa fase.  
FOLHA - Mas, ao menos na América  Latina, a urbanização veio acompanhada do crescimento da violência.  Na África e na Ásia, países pobres  que passam por essa transição não  correm sério risco de verem crescer  em favelas grupos criminosos ou terroristas à margem do Estado? 
COBBETT - Sem dúvida, e devemos nos preocupar seriamente  com isso. Mas não deve ser por  isso que devemos agir para impedir que a população viva em  condições precárias.
  É dever dos governos planejar o futuro de seus países. O  que vimos em muitas cidades  foi um fracasso das autoridades  em prover terras e serviços básicos para os mais pobres, reconhecendo  sua cidadania.  Se eu vou para a cidade e o governo não me dá terra, água ou  energia, eu vou conseguir isso  informal ou ilegalmente.
  O fracasso de governos locais  e nacionais em reconhecer esses direitos é o que cria espaço  para sistemas de poder alternativos à margem do Estado.
  Só que, em muitas cidades,  em vez de serem reconhecidos  como cidadãos ao chegarem, a  mensagem que os pobres recebem é oposta: vocês não são  bem-vindos, não te daremos  terra nem serviços e não reconhecemos seu direito de estar  aqui. Os governos que negaram  isso acabaram fracassando e  agora se sentem ameaçados pela imagem da insegurança.
  Mas, repito, não deve ser esse  medo que nos leve a agir.  
FOLHA - Mesmo melhorando as  condições de vida em algumas favelas, as pessoas continuam carregando um  estigma negativo por viverem ali? 
COBBETT - De fato, somente investir em favelas não resolverá  o problema. É preciso mudar a  forma como as pessoas de classe média e com propriedades  veem a população que vive nessas áreas. Será que reconhecem  que são cidadãos? Percebem  que é preciso fazer investimentos não para que essas populações saiam  dali, mas para que as  favelas sejam incluídas e façam  parte da cidade legal?
  É a atitude discriminatória  das elites que, em muitos casos,  mantém os moradores de favelas nessa situação. A favela em  si não é um problema, mas um  sintoma da forma diferenciada  com que as pessoas são tratadas  nas cidades.
  Além disso, em muitas cidades, a população em favelas ou  assentamentos precários é a  maioria da população. Então,  não devemos encarar como um  problema de favelas, mas como  um problema das cidades.  
FOLHA - O sr. vem com bastante  frequência ao Brasil. Notou desta  vez alguma diferença em relação às  condições de vida nas favelas? 
COBBETT - Acho que há uma  mensagem positiva a ser dada  ao resto do mundo em relação  ao Brasil. A Constituição de  1988 e o Estatuto das Cidades,  de 2001, são importantes marcos de melhoria do gerenciamento do acesso  às terras. Mas  vocês têm uma história de 500  anos que não se muda em dez. É  um processo longo que requer  uma política estável e investimentos constantes. Acho que é  isso que o governo vem fazendo  nos últimos oito anos, mas ainda há muito a fazer.
  Eu visitei nesta semana, por  exemplo, a Rocinha, e vi os investimentos que o PAC está  propiciando no local.
  Mas o lixo nas ruas ainda é visível. Todo mundo joga tudo  em qualquer lugar.
  Os investimentos são importantes para as comunidades  perceberem que os governos  reconhecem o direito de as pessoas estarem ali e tratá-las como  cidadãos, mas ainda há um  longo caminho a percorrer.  
COBBETT - Em primeiro lugar, uma favela em Salvador é diferente de outra no Rio, que é diferente de uma em São Paulo. Mas uma característica do Brasil é que, aqui, vocês têm cidades fortes, e o prefeito tem autoridade para tomar muitas decisões importantes.
Em muitos países, o poder local não é tão forte.
Também chama a atenção na comparação das favelas brasileiras com as da Índia ou de países africanos que, aqui, o nível de miséria é muito menor.
Obviamente, não se trata de uma competição, mas quando se visita uma favela nesses países percebe-se que, apesar dos problemas, as condições de vida aqui são melhores.
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