Taxonomia dos ratos
Se é impossível resolver, classificamos: o
taxonomista é, antes de tudo, um resignado; convido a iniciar uma taxonomia da
corrupção
Face a problemas insuperáveis, a ciência
classifica.
Médicos classificam tumores em benignos,
malignos, perversos ou dóceis. Zoólogos falam de baratas pretas, marrons,
voadoras, cascudas ou molengas; ratos de rabo longo, camundongos, ratazanas,
roedores urbanos e rurais. O método se chama taxonomia.
Se é impossível resolver, extinguir ou
explicar, classificamos. O taxonomista é, antes de tudo, um resignado.
Convido o leitor a iniciar uma taxonomia da
corrupção.
Existe a corrupção do fiscal, do policial, do
oficial de justiça, do perito avaliador, do inspetor da prefeitura, do
parlamentar. Esta é a malversação do tipo público. E a corrupção do setor
privado, obviamente, faz par a cada uma das classes de corrupção do setor
público.
Mas gêneros, espécies e subespécies ainda não
foram bem definidos.
Contribuo, então, com uma classificação que,
mesmo modesta, pode aumentar a produtividade dos caçadores de ratos,
fabricantes de inseticidas e ratoeiras, auditores, corregedores, promotores,
funcionários do Ministério Público, jornalistas e até gente do terceiro setor que
ainda se incomode com o tema.
Dividiria a corrupção do setor público em dois
grandes grupos.
A grande corrupção (chamemos de corrupção
"a la grande") está associada a investimentos públicos enormes. É o
mundo das negociatas impressionantes, das concessões viciadas, das toneladas de
cimento.
O caso famoso do prédio do Tribunal Regional
do Trabalho, na Barra Funda, em São Paulo, é bom exemplo. O prédio está lá. É
grande, espaçoso e funcional. Pode-se dizer até que é bonito. Custou 160
milhões de reais a mais do que deveria ter custado. Mas está lá.
O culpado pelo desvio foi morar em Miami,
comprou um monte de carros esporte e voltou preso. Quem ficou aqui acabou
devolvendo em prestações o superfaturamento praticado. A relação
custo-benefício, no final das contas, foi positiva: houve custo excessivo, mas
o prédio, repita-se, ficou pronto.
As características desse tipo de corrupção são
duas: primeiro, o bem público foi produzido e entregue. Depois, o valor
subtraído ficou conhecido e teve limite. Acabou a obra, acabou o roubo. E os
culpados mudam de ramo e nos deixam em paz, se não forem presos.
Existe também a corrupção pequena (de custeio,
diriam os economistas): contrata parentes, compra papel higiênico
superfaturado, orienta a criação de empresas de fachada para prestarem
serviços, cria cooperativas para pagar funcionários terceirizados, faz acordo
de "kick back" com os fornecedores e, principalmente, avacalha,
paralisa, lasseia e termina por matar a organização que administra.
Esse tipo de corrupto "petit cash"
instala-se em organizações públicas menores, nas quais pode atender a
fisiologia e necessidades de financiamento eleitoral sem ser percebido de
imediato.
Sangra a organização anos a fio, faz favores a
seus superiores e enche-se de queijo de maneira paulatina e continuada. A alta
administração do órgão se afasta e se esconde dos funcionários de carreira; o
segredo e a confidencialidade passam a ser as regras na organização.
E os serviços públicos que seriam oferecidos
vão perdendo qualidade, tornam-se irrelevantes. Os funcionários acabam
deprimidos, pois não têm o que fazer, ganham mal e sabem que o "andar de
cima" ganha bem por dentro e por fora. O resultado é o apodrecimento da
organização até a morte definitiva.
O custo desse tipo de corrupção parece pequeno.
Mas um desvio de 1 milhão por ano por tempo indefinido tem um valor atual
elevado. Se a taxa de juros de desconto for de 7,5% ao ano, 1 milhão por ano
custa ao contribuinte mais de 10 milhões.
Pior ainda, a relação custo-benefício é
infinita: custa 10 milhões e não oferece nenhum benefício público. Não há
adição, só subtração. É dez dividido por zero.
Não há um prédio, não há nada concreto no fim
da linha, só há ruínas e desmoralização. E a sociedade fica sem o serviço
público direito, enquanto centenas de funcionários passam anos em meio ao lixo.
Finalmente, esse tipo de corrupção tem um
agravante.
Como é obtido em suaves prestações, não
permite ao parasita fugir para outro país, ir morar na praia ou dedicar-se à
criação de cavalos. O parasita permanece grudado na instituição hospedeira da
qual suga o sustento por longos períodos, até que mudem os partidos no governo.
É uma corrupção mixa, que não produz fóruns,
estradas ou pontes.
Proponho, a quem tiver paciência de continuar
o trabalho de classificação, chamá-la de "corrupção brega". Minha
vontade de prosseguir na tarefa acabou. Estou indignado.
JOÃO SAYAD, 67, doutor em economia pela
Universidade Yale (EUA), é presidente da Fundação Padre Anchieta. Publicado no jornal Folha de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário